Inspiração

A Arte de Tomar Decisões: Instinto, Textura e o Processo Criativo de Nave Beatz

Complementar ao oitavo episódio de Off the Record, este artigo se aprofunda na vida e carreira de Nave Beatz, produtor musical brasileiro vencedor do Grammy Latino. Entenda como cada projeto se torna um novo idioma, por que limitações podem potencializar o processo criativo e como a filosofia dele guiou trabalhos com Emicida e Marcelo D2.

Construir uma carreira na música raramente segue um caminho linear. As viradas mais importantes acontecem fora das câmeras, em estúdios pequenos, conversas informais ou noites de tentativa e erro.

A série Off the Record existe para iluminar esses bastidores: os hábitos, dúvidas, referências e instintos que moldam artistas ao longo de décadas. Cada convidado mostra como enfrenta desafios, toma decisões e constrói sua identidade artística no processo.

O oitavo episódio apresenta Nave Beatz, produtor que marcou projetos fundamentais como AmarElo, de Emicida, e as reinvenções de Marcelo D2. Sua estética atravessa gerações: dos beats sujos e sampleados dos anos 2000 às fusões que desafiam gêneros, Nave é sempre guiado por curiosidade, experimentação e um profundo respeito pela música brasileira.

Muito antes de operar equipamentos, ele aprendeu a ouvir. Para ele, o produtor é, acima de tudo, alguém que decide. Alguém que filtra possibilidades infinitas para chegar a uma visão clara e coerente.

Os tópicos a seguir aprofundam lições que marcaram sua trajetória e revelam como Nave constrói ideias, lida com incertezas e transforma experimentos em obras completas.

Aprendizado na prática: Quando a curiosidade vira método

A formação tradicional tem seu valor, mas muitos produtores se desenvolvem mais diante de situações reais no estúdio. Com Nave, não foi diferente. Ele entrou no mercado antes mesmo de dominar a técnica, forçando-se a aprender rápido, criar soluções e assumir riscos.

Nave esclarece:

“Eu não fui um cara que fui, tipo, assistente de estúdio, ou que toquei o instrumento desde a infância ou da adolescência… Eu entrei num mundo que eu precisava já saber muito. Foi aquela coisa: fazendo o que eu conseguia fazer e aprendendo ao mesmo tempo, saca?”

Com o tempo, essa urgência virou filosofia. Em vez de buscar perfeição imediata, Nave transformou a prática diária em disciplina, mantendo-se sempre em construção.

“Eu considero que até hoje eu tô todo dia aprendendo alguma coisa nova.”

Um encontro que muda tudo: Marcelo D2 e a confiança de seguir em frente

Em toda trajetória artística existe um momento que redefine o rumo. Para Nave, isso aconteceu quando uma demo caseira chegou, inesperadamente, às mãos de Marcelo D2. O telefonema que veio depois confirmou que a música poderia, de fato, ser seu caminho profissional.

“Essa demo acabou caindo na mão do D2 (…). Eu achei que era mentira quando ele me ligou. E um ano depois eu tava nesse rolê com o D2, já. E trabalho com ele até hoje.”

Uma das contribuições mais inovadoras dessa parceria foi a criação do conceito de “Novo Samba Tradicional”, ao lado de D2, Kiko Dinucci e Mário Caldato. O processo misturou pesquisa histórica profunda, escuta de referências, samples de arquivo e a participação de músicos cujas texturas pessoais se tornaram essenciais para o todo. A estética uniu ritmos brasileiros com influências de R&B, produção alternativa e camadas sonoras. Cada colaborador trouxe uma emoção distinta para o resultado final.

Memória, escuta e o repertório que sustenta um produtor

A identidade musical de Nave não começou no estúdio, mas em casa. Discos de vinil nos fins de semana, rádio na cozinha, MTV depois da escola e irmãos ouvindo Nirvana, Soundgarden, Queen, Lô Borges, Djavan e Stevie Wonder em looping. Muito antes de entender como gravar uma linha de baixo, ele já sentia seu efeito emocional. Essa imersão precoce moldou os instintos que guiariam suas decisões como produtor.

“Acho que foi o mix de tudo isso, e meio que você vai crescendo tendo um prazer genuíno de ouvir música, né? Que é uma coisa que eu tenho até hoje — de parar e ouvir um disco, parar e botar um disco na vitrola… É prazeroso fazer isso.”

Conforme amadurecia, o simples ato de ouvir se transformou em habilidade analítica. O que era intuitivo virou estudo consciente de arranjos, texturas e timbres. Ainda assim, uma parte dele sempre retorna à infância quando escuta os artistas que formaram essas primeiras memórias.

“É fundamental, pra qualquer pessoa que quer ser produtor, ter repertório. Ouvir o máximo de música possível.”

Raiz underground e como a estética orienta cada decisão

Nave costuma se descrever como um artista do underground que transita pelo mainstream sem perder a perspectiva que o formou. O fascínio inicial por Madlib, J Dilla, DJ Premier, Zegon, DJ Nuts e a estética crua de produção de Nova York criou uma base que informa seu trabalho décadas depois. Essa sensibilidade permanece, mesmo quando colabora com grandes artistas ou explora gêneros mais comerciais.

“Hoje em dia, eu me vejo como um produtor de underground que passeia nesse universo do mainstream.”

Essa identidade funciona como um filtro para suas escolhas. Mesmo quando um projeto pede uma direção mais limpa ou polida, ele traz elementos das texturas cruas e do tempo livre que marcaram o underground do final dos anos 90 e início dos anos 2000.

“Por exemplo, o Madlib foi um cara que, em relação à textura de som, me influenciou muito — a ponto de às vezes ser até difícil produzir uma música que é mais pop. Porque a sonoridade dele tá tão dentro da minha cabeça — que é uma coisa que é suja, sampleada de vinil, super comprimida (…). Então a minha visão de música passa um pouco por esse lugar.”

Texturas, sujeira e o valor emocional da imperfeição

Um dos traços mais marcantes da estética de Nave é sua relação com a textura. Muito além de um gesto nostálgico, a busca por texturas é uma forma de provocar sensações. Um leve estalo ou uma distorção sutil podem mudar a forma como o ouvinte sente um acorde ou melodia.

“É uma coisa instintiva. Eu vou colocando e vai virando um som meu. Então, compressão e sujeira de vinil, sempre vai ter. Ou sujeira de fita. Eu sempre vou passar um pouquinho do ponto, porque eu gosto dessas características.”

Nave descreve isso como uma qualidade que captura o ouvido de maneiras que muitos ouvintes não sabem explicar. O impacto psicológico desses detalhes cria calor, profundidade e familiaridade.

“Aquele tempero ali, aquela passada de verniz que o analógico tem (…) te pega, assim, e você não sabe dizer muito bem por quê, né?”

Experimentação como rotina: Criar sem depender da inspiração

Para Nave, criatividade não é estado de espírito: é método. Ele rejeita a ideia de que o produtor deve esperar pela inspiração. Em vez disso, confia numa prática diária de experimentação que mantém o processo em movimento, mesmo na incerteza.

“ Eu não gosto muito da ideia de estar inspirado ou não estar inspirado. Eu gosto daquele conceito que o Tom Zé fala: (…) ele acorda todo dia e vai lá e faz o trabalho dele. Faz um pouco de música e vai fazendo, vai fazendo… É a forma como eu entendi que eu tinha que trabalhar pra conseguir prosperar dentro desse mercado, que é sentar e fazer a coisa acontecer.”

Ideias frequentemente surgem após muitas tentativas. O importante é continuar tentando, testando, mudando, reenquadrando e reagindo aos acidentes.

“Às vezes você tá sem ideia, às vezes as coisas não estão muito claras na sua cabeça, e você tem que ir experimentando, (…) tentando encontrar alguma ideia — até que em algum momento o teu ouvido bate e fala ‘putz, isso aqui é interessante’.”

Às vezes, o inesperado vira destaque.

“É um trabalho de tentativa e erro também. Você vai testando, até que uma hora algo interessante acontece — um acidente, né? Assumir o acidente também é importante, saca? O acidente, às vezes, é mais interessante do que propriamente a intenção original.”

Cada projeto como um novo universo

Nave nunca reutiliza fórmulas, mesmo quando um projeto anterior foi sucesso. A repetição soa vazia para ele, que prefere tratar cada álbum como um mundo criativo único, com regras e referências próprias. Essa mentalidade mantém seu catálogo diverso e evita vícios criativos.

“Eu tenho um problema com me sentir repetitivo, é uma coisa que me deixa desconfortável. Não consigo fazer uma coisa e ficar naquela coisa, sabe?”

Essa atenção se estende a cada colaborador. Se um artista traz uma bagagem estética ou cultural específica, o projeto deve refleti-la com autenticidade.

“Cada artista é um artista, e cada projeto é um projeto.”

Quando o limite vira bússola

Ao longo da carreira, Nave aprendeu que escolher limites pode tornar o processo criativo mais focado e eficaz. Delimitar equipamentos, texturas, referências ou instrumentos dá ao projeto uma personalidade clara e, frequentemente, leva a resultados mais originais.

“Delimitar um conceito. (…) Eu consigo raciocinar melhor quando eu começo a delimitar, e eu consigo tirar o melhor de mim pra tentar tirar o melhor do artista.”

Essas limitações ajudam a manter a coesão em álbuns que, de outra forma, poderiam se perder estilisticamente.

“Eu gosto muito dessa ideia de delimitar o teu campo criativo (…). Porque isso vai te trazendo um lugar de autenticidade.”

A mesma abordagem moldou os conceitos iniciais de AmarElo, de Emicida, onde restrições estéticas guiaram a direção sonora.

“A primeira ideia era fazer uma mistura entre música de candomblé e música gospel. A primeira ideia do AmarElo era essa, juntar esses dois universos. Talvez um mais ritmicamente e outro mais em termos de harmonia. Então a gente ficou um tempo girando essa lâmpada, fazendo uns testes, né?”

Samplear é ressignificar: Colagem, reciclagem e reinvenção

O sample está no coração da identidade artística de Nave. Ele o trata não como replicação, mas como transformação, descrevendo o processo como uma forma de colagem e reciclagem criativa.

“É quase um trabalho de reciclagem. (…) Dependendo do tipo de produção — se for um tipo de produção clássico de rap, de boom-bap —, é quase (…) um quadro de colagens, saca?”

Essa mentalidade guia como ele corta, rearranja e mistura samples com instrumentos ao vivo ou ferramentas modernas de produção.

“Minha matéria-prima é o sample. Eu sempre vou pegar o sample e tentar misturar ele ou integrar ele com algum outro elemento.”

Reconhecimento e responsabilidade

Prêmios nunca foram o objetivo de Nave, mas receber uma indicação ao Grammy Latino pelo álbum de Marcelo D2 confirmou que a experimentação e o respeito embutidos em seu trabalho ecoaram além do estúdio.

O reconhecimento simbolizou não apenas sucesso técnico, mas sensibilidade cultural — especialmente dentro de um gênero como o samba, que carrega profundo peso histórico.

“O álbum foi indicado ao Grammy. (…) É uma validação do trabalho que a gente fez — porque a gente tinha, também, muito respeito pelo samba e pela tradição do samba.”

Essa validação fortaleceu sua crença de que inovação e tradição podem coexistir quando tratadas com cuidado.

Posteriormente, em 2020, Nave Beatz ganhou um Grammy Latino pela produção do álbum AmarElo, de Emicida.

Confie no seu ouvido e confie no processo

A jornada de Nave, de beatmaker autodidata a vencedor do Grammy Latino, oferece uma lição clara: produção tem menos a ver com ter opções infinitas e mais a ver com saber quais escolher. Seja adicionando ruído de vinil para criar calor ou despindo uma faixa até o essencial, seu trabalho prova que o verdadeiro instrumento de um produtor é a capacidade de tomar decisões.

Você não precisa esperar por um raio de inspiração ou um estúdio de ponta para começar a definir seu som. Como Nave demonstra, os verdadeiros avanços acontecem quando você aparece todo dia, abraça os “acidentes felizes” e coloca sua intuição acima da perfeição técnica.

Leve essas lições para sua próxima sessão. Defina seus limites, respeite suas referências e não tenha medo de deixar as arestas aparentes.

Quer saber mais sobre a carreira e o processo criativo de Nave Beatz? Confira o episódio completo de Off the Record no nosso canal do YouTube.

Camila Miranda

Brazilian, with a background in Psychology and currently pursuing a postgraduate degree in Communication & Marketing. Music lover, with my voice being my primary instrument, but I can also play the guitar — and I've played around with the bass. Proud mom to many pets and an enthusiast of tattoos and hair makeovers.

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